terça-feira, 4 de novembro de 2008

Artigo Equidade ou igualdade? Diferenças entre o critério igualitarista das cotas e o meritocrático dos vestibulares

FONTE: RECEBIDO DE LISTA DE E-MAILS

Equidade ou igualdade?
Diferenças entre o critério igualitarista das cotas e o meritocrático dos vestibulares
Valerio Arcary, professor do CEFET/SP, doutor em História pela USP, é membro do conselho da revista Outubro.

A discussão das cotas abriu uma polêmica sobre os critérios de acesso, alguns defendendo o princípio meritocrático, e outros defendendo as políticas afirmativas. Esta polêmica será improdutiva se não contextualizarmos os critérios que sustentam as duas posições à luz de perspectivas ideológicas, ou seja, projetos mais amplos: o liberalismo e o socialismo. O limite político do liberalismo foi a igualdade jurídica dos cidadãos. Os cidadãos seriam desiguais em sua inserção no mercado, porém, deveriam ser iguais diante da lei. A única igualdade possível para os liberais, sem destruir a liberdade, seria a igualdade de oportunidades, ou seja, a eqüidade. O ponto de partida do marxismo foi a crítica do capital, portanto, a impossibilidade da liberdade sem a igualdade. A liberdade não seria possível entre desiguais.
Os marxistas lutam pela eqüidade, mas, seu projeto é a igualdade social. Isto posto, não há como tergivesar que as cotas sociais e raciais no ensino superior, ou nos concursos públicos, são uma pequena reforma que, sob o capitalismo, não poderá mudar o destino da imensa maioria de milhões de jovens negros e mulatos. Mas, todas as medidas de reforma têm este mesmo limite, e isso não impediu a tradição marxista - fosse radical ou moderada - de lutar por elas. Assim como o aumento dos salários ou a estabilidade no emprego, a reforma agrária ou a vinculação de verbas no orçamento do Estado para a educação e a saúde pública, as cotas de acesso à universidade e aos empregos públicos são uma reforma progressiva, ou seja, uma conquista parcial da juventude afro-descendente.

Iguais e diversos
Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem - o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. Em contraposição, o marxismo nunca defendeu que os homes seriam iguais uns aos outros. O marxismo percebia que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa, os seres humanos possuindo capacidades e talentos variáveis. Uns eram mais enérgicos e outros mais reflexivos, uns mais imaginativos, outros mais corajosos, uns mais virtuosos, outros mais perseverantes. Os limites, defeitos e vícios humanos eram percebidos, também, como variados. O marxismo procurou desnaturalizar a desigualdade social, compreendendo a condição humana no contexto das transformações históricas das relações sociais.
Não obstante, o marxismo destacava, sobretudo, que as necessidades mais intensamente sentidas eram iguais. Mais ou menos capazes, todos os seres humanos compartilharam uma experiência comum: a necessidade de alimentação, vestimenta, abrigo, aprendizagem, segurança e diversão foram iguais para todos.
O programa socialista inscreveu na história a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida. A universalização dos direitos sociais remete ao cerne do projeto socialista: a luta pela liberdade humana, em que o trabalho deixe de ser um castigo para os explorados, e passe a ser a plena realização do potencial criativo de busca de conhecimento, beleza e solidariedade. Essa deve ser a missão fundamental da vida civilizada, e é o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Mas, a luta pela igualdade que deu sentido à existência da corrente socialista exigiu e exigirá, por um período de transição, tratar desigualmente os desiguais, sob pena de perpetuar a desigualdade.

A luta contra as opressões é indivisível da luta contra a exploração
Os marxistas insistem na centralidade da luta contra a exploração, mas não ignoram o racismo e o machismo. Reconhecem a legitimidade de todas as lutas contra as diferentes formas de opressão. O argumento dos que defendem a igualdade de oportunidades contra as cotas aceita o limite da igualdade burguesa. A eqüidade é o limite do liberalismo. O socialismo quer igualitarismo. A sociedade burguesa histórica nunca pôde, evidentemente, realizar a igualdade jurídica. Em país algum, em nenhum momento da história, os cidadãos foram iguais diante da lei, porque os donos do capital podem mais. Mas, a desigualdade de condições sociais não se restringiu às diferenças de classe. Ser branco pobre no Brasil nunca foi, também, o mesmo que ser negro pobre. A igualdade de oportunidades, ou seja, a equidade, não é suficiente para corrigir estas desigualdades. Apresentar aos trabalhadores negros o mesmo programa que se apresenta aos trabalhadores brancos significa ignorar sua condição específica como o setor mais explorado do povo.
A universalização de direitos que hoje são um privilégio de poucos, como uma alta escolaridade, é um projeto de grandeza histórica. O marxismo defendeu que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério de distribuição de “cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, construído pela socialização da propriedade. Seu objetivo é a crescente gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes ou do lazer. A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá ir além, progressivamente, do regime do trabalho assalariado.
Os marxistas nunca se iludiram, todavia, que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país. Marx compreendeu o socialismo como um processo de passagem ao comunismo, e a experiência histórica do século XX foi mais do que suficiente para reforçar a hipótese de Lenin e Trotsky, no alvorecer da experiência soviética na Rússia, que seria necessário, nos países atrasados, em função da terrível herança de atraso herdada, e da imprevisível desigualdade de ritmos da revolução mundial, uma etapa de transição ao socialismo.

Tratar os desiguais como iguais perpetua a desigualdade
No capitalismo a distribuição é regulada pela propriedade privada e pelo mercado. Em situações de crise, o Estado intervém para socializar os prejuízos e salvar os capitalistas. O marxismo propôs como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Não defendeu salários iguais para trabalhos desiguais. Trabalhos mais penosos ou mais perigosos deveriam ser recompensados com salários mais elevados. Trabalhos que exigissem muitas décadas de instrução deveriam receber salários maiores.
Ao reconhecer que a distribuição da riqueza seria regulada segundo o trabalho realizado, os marxistas estavam eliminando a apropriação de mais-valia pelo capital – ou seja, expropriando os expropriadores - mas admitindo uma distribuição desigual, transitoriamente, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. Os socialistas reconheceram que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio de distribuição meritocrático – a tirania do esforço ou do talento – não garantiria ainda a igualdade social, porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais, perpetuando-a. Trabalhos diferentes, pela complexidade da educação exigida, ou pela intensidade do desgaste, não poderiam e não deveriam ter salários iguais. Aceitaram a necessidade de seleção para o acesso às melhores oportunidades. Descartaram o sorteio porque seria ainda pior, premiando o acaso. Mas, a eqüidade é ainda uma igualdade formal. Nas palavras de Marx:
Este direito igual continua levando implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que produziram; a igualdade aqui consiste em que se mede pela mesma medida: pelo trabalho. Mas, uns indivíduos são superiores física e intelectualmente a outros e produzem no mesmo tempo mais trabalho, ou podem trabalhar mais tempo(...) Este direito igual, é um direito desigual para trabalho desigual(...) Para evitar estes inconvenientes, o direito teria que ser não igual, mas desigual
[1].
A igualdade social é, portanto, um objetivo superior à igualdade de oportunidades. A meritocracia considera de forma igual os desiguais. Os socialistas defendem que, em uma sociedade desigual, para que se diminuam as diferenças sociais, não bastaria a eqüidade: seria necessária tratar de forma desigual os desiguais. Essa é a defesa de Lênin: “Mas isto não é, todavia, o comunismo, não suprime ainda o direito burguês, que dá uma quantidade igual de produtos a homens que não são iguais, e por uma quantidade desigual de trabalho”
[2].
Os marxistas admitiram a introdução de fatores de correção social e, culturalmente, progressivos. Essa discussão surgiu a propósito das reivindicações das mulheres e das nações oprimidas, mas o critério é o mesmo quando discutimos o racismo.

Cotas são justas, porém, insuficientes
As cotas do Governo Lula são um bombom em um bolo envenenado: a reforma universitária que legaliza a transferência de verbas públicas para o ensino privado, através do Prouni, anistiando as dívidas fiscais de um setor que vem faturando dezenas de bilhões todos os anos.
Ninguém ignora que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm somente igualdade de condições formais, portanto, abstratas, porque a seleção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. Entre os mais desfavorecidos estão os negros.
As políticas afirmativas de cotas de acesso para afro-descendentes corrigem, parcialmente, um obstáculo que só é invisível para os que diminuem, ingenuamente, o peso do racismo no Brasil. Contrapor às cotas a bandeira do acesso livre para todos é um argumento que impressiona, mas é estéril. É maximalismo. Nos últimos trinta anos, o movimento estudantil não realizou mobilizações de massas por Vagas para todos. Não deve haver dúvidas que Vagas para todos, já! é um programa justo. Mas, é um programa máximo. A luta pelas cotas é uma luta por uma reforma que já é capaz de convocar para o movimento estudantil muitos milhares de jovens negros que até então não estavam politicamente ativos.
Os custos econômicos de um sistema de ensino superior gratuito de qualidade são muito elevados, e maioria do povo, intuitivamente, não o desconhece. Estas despesas exigem investimentos em tal escala, especialmente altos por um longo período de implantação, que são incontornáveis decisões políticas que são incompatíveis com a preservação do capitalismo. Desmercantilização completa da educação superior é uma bandeira socialista, porque exige a expropriação de toda a rede de centenas de universidades particulares. Elevar o nível cultural da sociedade através de um aumento qualitativo dos anos de escolaridade média é uma tarefa histórica colossal, o cerne de uma verdadeira revolução cultural, que exige, no mínimo, o intervalo de uma geração, e uma inversão de recursos tão gigantesca, que esteve muito além do que o esforço individual dos estudantes, ou de suas famílias, poderia custear. Toda a experiência histórica o confirma.

Educação superior é cara
Os países em que o percentual da população em idade escolar com acesso ao ensino superior foi além dos 50% - mas ainda muito aquém dos 100% - como os EUA (onde sempre se cobraram mensalidades) ou a França nos anos noventa (que passou a cobrar, ainda que, proporcionalmente, menos) tiveram que subsidiar as universidades. O ensino de qualidade significa a desmercantilização de uma das necessidades humanas mais sentidas, mas muito mais cara que erradicar a fome, ou subsidiar as passagens de transportes públicos urbanos. Em nenhum dos processos revolucionários do século XX foi possível garantir acesso irrestrito ao ensino superior para todos. Muito menos liberar o acesso livre em qualquer curso. Não foi possível na Rússia. Na China tampouco. Cuba nunca esteve sequer próxima da universalização do ensino superior. Nem sequer na Alemanha Oriental ou na Tchecoslováquia, que foram as sociedades econômica e culturalmente menos atrasadas em que o capitalismo foi derrotado.

Meritocracia contra igualitarismo é um argumento reacionário
O argumento de que, ao invés das cotas, dever-se-ia garantir educação de qualidade universal desde a escola primária pode parecer um argumento razoável, mas não é. É uma meia-verdade, e como todas as meias verdades é uma meia mentira. É, também, reacionário. A verdade em abstrato é um argumento demagógico. A busca da verdade exige olhar de frente o mundo como ele é. Não se pode pedir justiça ao futuro, sacrificando a esperança no presente: por quê a juventude negra deveria aguardar que os seus filhos, talvez, daqui a vinte anos - se agora se começar a garantir educação primária de qualidade para todos, o que todos sabemos, é implausível - possam ter acesso ao ensino superior gratuito? Essa posição afasta o movimento negro da causa socialista.
O que se está defendendo contra as cotas não é, portanto, o acesso universal, mas um critério de seleção, o meritocrático. A meritocracia, ou seja, a equidade, é mais justa do que o racionamento pelo preço das mensalidades – a seleção determinada pelas diferenças de classe – mas, isso não faz dela um critério justo, porque não é igualitarista. Igualitarista é tratar de forma desigual os desiguais, favorecendo os mais explorados ou oprimidos. Os defensores da meritocracia estrita propõem à juventude operária e negra que estudem mais, e tentem o vestibular outra vez. Em outras palavras, pedem que os jovens negros se conformem com sua condição. Os socialistas não querem que os jovens negros se conformem. Querem que eles se rebelem, agora e já, para ter acesso às melhores universidades públicas e gratuitas.
A meritocracia sempre foi, socialmente, regressiva. Por isso, é indefensável. Que os mais reacionários já tenham descoberto que atacar a gratuidade das universidades públicas tem repercussão, especialmente, entre os trabalhadores, não nos deveria surpreender. O resultado da permanência da equidade meritocrática será o isolamento político-social dos que defendem as Universidades públicas, como a USP/:UNICAMP/UNESP, as Federais e os CEFET’s, beneficiando a campanha pela cobrança de mensalidades e, finalmente, a privatização.
O último argumento: o perigo da divisão do povo brasileiro, em particular entre os brancos pobres e os negros. A possibilidade de divisão do proletariado é um problema real. Não obstante, ignorar a condição oprimida específica da população negra, em nome de um programa comum de todos os trabalhadores contra o capital, não vai construir a unidade da classe trabalhadora, mas a sua divisão. O racismo no Brasil não é uma invenção dos líderes dos movimentos negros. As políticas de cotas são insuficientes, porque não podem mudar, substancialmente, a condição do negro sob o capitalismo. A juventude negra só terá um futuro melhor se unir sua luta com toda a juventude trabalhadora. A libertação dos negros só será possível com a libertação do povo brasileiro.

[1] MARX, Karl, Crítica do programa de Gotha, Lisboa, Nosso Tempo, 1971, p.31-32.
[2] LENIN, Vladimir, El Estado y la revolución, in Obras Escojidas en tres tomos, Moscou, Progresso, 1960. p.371. Tradução nossa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo texto, porém, há ainda outra questão: democratizar o conhecimento. Há que se fazer chegar a todos "esse" conhecimento argumentativo, e , principalmente, aos negros, pois, muitas vezes, eles ouvem as críticas ao Programa de Cotas para Negros e não sabem se defender, chegando a se sentirem humilhados e desacreditados em sua capacidade e em seu direito.